Ampliação dos serviços controlados pelo crime é observada em outras regiões do Brasil. No Ceará, tentativa de dominar internet em comunidades é fenômeno recente, com ataques em quatro cidades desde o último mês de fevereiro. Em menos de um mês, foram pelo menos oito ataques de facção criminosa contra empresas provedoras de internet no Ceará
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Os ataques criminosos contra empresas que fornecem internet no Ceará, iniciados há pouco mais de um mês, trazem uma nova face para a atuação das facções criminosas no estado. Para especialistas, a tentativa de dominar o serviço de internet segue um modelo já aplicado em comunidades de outras regiões, gerando mais dinheiro para as organizações criminosas.
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No Ceará, foram pelo menos oito ataques realizados nas cidades de Fortaleza, Caucaia, Caridade e São Gonçalo do Amarante desde o dia 22 de fevereiro (veja a cronologia dos ataques no fim da reportagem). Os ataques incluíram tiros contra fachadas das empresas, depredação e queima de veículos e rompimentos de cabos de fibra óptica, deixando os clientes sem internet.
Membros do Comando Vermelho, responsáveis pelos ataques, exigem dinheiro de operadoras de internet para permitir a oferta do serviço e promovem ações de retaliação contra as empresas que se recusam a pagar “taxas”.
Um modelo importado
Ataques de facções a provedores de internet no Ceará geram prejuízo de R$ 1 milhão
Em comunidades do Rio de Janeiro, a imposição de serviços clandestinos de internet, água, gás e cooperativas de transporte é uma prática adotada em territórios sob influência de facções, milícias e traficantes de drogas.
Nesta última semana, serviços clandestinos de internet ligados ao Terceiro Comando Puro (TCP) no Complexo de Israel, na Penha, foram desarticulados pela polícia. Em bairros como Estácio, Olaria, Brás de Pina, Cordovil e Piedade, moradores denunciam a imposição de sinais clandestinos após atos criminosos contra empresas de internet.
O pesquisador Raul Thé, que estuda o tema da violência e está vinculado ao programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), considera que as facções criminosas operam em uma lógica empresarial, com estruturas e tentativas de expansão semelhantes às das empresas legalizadas.
Segundo esta análise, as “empresas da violência” industrializam o crime e expandem seus produtos para além do tráfico de drogas — considerado o carro-chefe.
Como aponta, esta oferta de serviços próprios de internet, gás e transportes tem se intensificado na última década em territórios do Rio de Janeiro dominados por facções criminosas. Nesta dinâmica, o monopólio do tráfico se transforma em um monopólio econômico mais amplo.
“Enfrentar conglomerados econômicos de ofertas de serviços, seja de internet, seja outro, é uma forma de expressar que: ‘o Estado manda, mas no meu território mando eu. Nós podemos diminuir a violência e aumentar a violência como queremos e podemos operar os serviços da forma como achamos melhor’”, comenta Raul Thé.
Arte mostra mapa com locais que ficaram sem internet após ataques de facções no Ceará
Arte/g1
Para o pesquisador, a quantidade de chacinas no Ceará em 2024 evidenciava que os grupos criminosos estavam em conflito entre si.
Ele aponta que estas facções entraram em um processo de pacificação no estado, diminuindo os episódios de guerra contra grupos rivais e mirando agora nas empresas legalizadas e no Estado como oponentes da vez.
Além de demonstrar força em regiões historicamente menos assistidas pelo Estado, o pesquisador aponta que os grupos também buscam expandir as fontes de recursos. Ainda mantendo a analogia com empresas, é como se o momento fosse de tentar aumentar o portfólio de produtos.
O pesquisador contextualiza que os grupos conseguem impor o monopólio de seus serviços intimidando as pessoas das comunidades com punições em caso de “desobediência”.
“Especialmente no Rio de Janeiro, nós vemos que há uma imposição muito grande. Se eles não conseguem dominar a não entrada das empresas, eles abafam essa empresa justiçando pessoas em espaços públicos, levando pessoas a serem violentamente compelidas a usarem os serviços deles”, comenta o pesquisador.
Produtos além do tráfico
Desde fevereiro, os provedores de internet do Ceará estão sendo alvos de uma série de ataques promovidos por uma facção criminosa, que está cobrando das empresas parte do valor dos serviços prestados.
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No Ceará, outras práticas das facções nos últimos anos incluíram cobrança de “pedágio” a comerciantes de comunidades e tentativas de monopólio do jogo do bicho, observa o sociólogo Artur Pires, pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), vinculado à UFC.
“Essa questão da internet é super nova no Ceará, mas é um modo de operação das facções no Brasil. Este fenômeno está chegando no Ceará. Por conta de uma presença mais ostensiva da segurança pública, talvez elas [facções] tenham perdido recursos do tráfico de drogas e de armas e estão expandindo, diversificando as atividades”, aponta Artur.
Nos estudos sociológicos da violência, a expressão “mercado de proteção” tenta explicar este modelo de atuação nas comunidades. Na teoria, as facções dominam territórios e prometem proteger os moradores. No entanto, esta proteção vem acompanhada de práticas de extorsão, como destaca o pesquisador.
As organizações criminosas conseguem recursos a partir de serviços essenciais para um grande número de consumidores.
Em estudo recente, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostra que o crime organizado no Brasil tem lucrado mais com a venda ilegal e o contrabando de combustíveis e bebidas do que com o tráfico de cocaína.
Falando sobre a atuação das facções criminosas no Brasil, Artur Pires comenta também que estes grupos não se reduzem ao estereótipo de jovens periféricos ligados ao tráfico de drogas. Ele alerta que as organizações têm conseguido se conectar com diversos setores da sociedade, se inserindo também no meio empresarial e político.
“Estas facções têm que, de fato, contactar pessoas capacitadas, que tenham a expertise para conseguir montar uma estrutura de um provedor de internet, por exemplo. Então é importante pensar como as facções conseguem também ampliar o leque de conexões e como o crime perpassa diversos setores”, analisa o sociólogo.
No primeiro dia de operação policial para conter os ataques no Ceará, foram presos cinco donos de empresas clandestinas de internet, também sendo suspeitos de envolvimentos nos atos criminosos contra provedoras. Mais três foram presos nesta sexta-feira (14), na segunda fase da operação.
Possíveis desdobramentos
Operação policial para coibir ataques a operadoras de internet no Ceará prendeu 24 pessoas na última semana
SSPDS/Divulgação
As novas empreitadas têm riscos também no mundo do crime. Uma delas é a reação das forças de segurança do Estado, que têm buscado conter os ataques realizados pelo Comando Vermelho. No Ceará, foram duas fases da operação Strike, que prendeu 24 pessoas suspeitas de envolvimento nos crimes.
Para o pesquisador Raul Thé, o Estado deve intensificar os investimentos em inteligência policial, buscando desarticular as atividades da facção criminosa e compreender o que está sendo financiado com os recursos obtidos por meio da nova prática de extorsão.
Conforme Artur Pires, melhorar o trabalho de inteligência policial é essencial a curto prazo, tentando identificar também novos territórios que possam estar no radar das organizações para a imposição de serviços clandestinos. Ele não descarta que as outras facções presentes no estado também venham a atuar de forma semelhante.
“O que a gente tem percebido sobretudo nesta última década, que configura a chegada das facções no Ceará, é que o Estado e as políticas de segurança estão sempre um passo atrás das ações desses grupos. Os grupos armados e faccionados agem, e o Estado está sempre reagindo. Ele não está se antecipando a essas ações”, avalia o pesquisador.
Como aponta o sociólogo, as intervenções de médio e longo prazo passam por políticas públicas efetivas e transversais, com investimentos em educação, cultura, lazer, saúde.
Cronologia dos ataques no Ceará
11 de março: criminosos jogaram pedras contra um veículo da empresa Brisanet na cidade de Caucaia.
10 de março: a fachada da empresa Acnet, na cidade de Caucaia, foi alvo de vários tiros.
10 de março: membros de facção destruíram fiação de uma empresa de internet em Caucaia.
9 de março: um dia após o governador anunciar combate a esse tipo de crime, uma empresa foi atacada na madrugada no Bairro Sítios Novos, em Caucaia.
8 de março: o governador do Ceará, Elmano de Freitas, anuncia criação de grupo para combater a facção que ataca as provedoras de internet no estado.
7 de março: criminosos destruíram várias fiações de uma operadora na cidade de Caridade; 90% dos clientes do município ficaram sem internet.
6 de março: um carro de serviço da Brisanet foi completamente destruído pelas chamas no Conjunto Metropolitano, em Caucaia.
27 de fevereiro: no distrito do Pecém, no município de São Gonçalo do Amarante, onde está localizado o Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP), criminosos invadiram e vandalizaram uma empresa.
22 de fevereiro: no Bairro Jacarecanga, em Fortaleza, dois veículos da empresa Brisanet foram destruídos em incêndio.
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