Considerado um “fóssil vivo” com mais de 400 milhões de anos, espécie tem o sangue usado na testagem de vacinas e medicamentos, mas a extração desenfreada pode colocá-lo à extinção. O caranguejo-ferradura está entre as espécies mais antigas da Terra
Ray Duffy/iNaturalist
Ele sobreviveu a cinco extinções em massa, caminhou pelos mares antes mesmo dos dinossauros existirem e guarda no sangue um segredo que contribui diretamente para a salvação de milhares de vidas humanas. Estou falando do caranguejo-ferradura (Limulus polyphemus), também conhecido como límulo, um artrópode quelicerado que vive em ambientes costeiros.
Embora sejam chamados de caranguejos, eles não pertencem a esse grupo e nem sequer são crustáceos. Na realidade, são mais próximos na árvore evolutiva de escorpiões e aranhas do que dos caranguejos tradicionais.
O caranguejo-ferradura está entre as espécies mais antigas da Terra e acredita-se que habite o planeta há cerca de 450 milhões de anos. Se um desastre natural ou um apocalipse nuclear varresse a vida como conhecemos, poucas criaturas teriam chances de resistir, mas o artrópode provavelmente estaria entre elas.
Seu sangue azul, além de intrigante, é precioso: ele é utilizado para testar vacinas e medicamentos. Mas essa contribuição cobra um preço alto da própria espécie, que hoje se vê vulnerável à exploração desenfreada.
Desde os anos 1975, as populações do caranguejo caíram em até 75%
Brandon Henry/iNaturalist
O que dá ao sangue do caranguejo-ferradura sua coloração azul característica é a hemocianina, um pigmento respiratório que contém cobre em sua composição, ao contrário da hemoglobina dos humanos, que tem ferro e confere a cor vermelha ao nosso sangue. A hemocianina absorve a luz vermelha e reflete a azul, resultando no tom que tornou o caranguejo famoso entre cientistas.
Mas o valor do sangue vai muito além da cor. O que realmente o torna indispensável para a medicina moderna é a presença de uma substância chamada lisado de amebócitos de Limulus (LAL), que reage imediatamente quando entra em contato com endotoxinas bacterianas.
Por isso ele é usado em testes de pureza de vacinas, soros, próteses e medicamentos injetáveis. Uma pequena gota do sangue do caranguejo é capaz de detectar contaminações microscópicas que poderiam passar despercebidas por outros métodos.
“Eles são utilizados para testar novas vacinas produzidas, novos medicamentos produzidos, então esse é um gigante benefício para a indústria farmacêutica e para a medicina, de uma maneira geral, então ele é importantíssimo. Dessa forma ele garante que esses fármacos sejam seguros para o uso humano”, diz o professor Dr. Felipe Ribeiro, do departamento de biologia da FFCLRP-USP.
Cerca de 30% dos indivíduos morrem durante o processo da coleta de sangue
doug_e/iNaturalist
Graças a isso, o límulo se tornou uma peça-chave na indústria farmacêutica, especialmente após a popularização das vacinas em larga escala. Estima-se que quase todos os medicamentos injetáveis do mundo passem por um teste baseado no sangue desse animal.
A dependência é tamanha que, todos os anos, centenas de milhares de caranguejos-ferradura são capturados para extração desse fluido valioso. Em 2020, por exemplo, o sangue foi usado incessantemente na corrida para a criação de uma vacina para o Covid-19.
De acordo com um artigo publicado na Frontiers in Marine Science, cerca de 500 mil caranguejos-ferradura são coletados anualmente na costa leste dos Estados Unidos, principalmente para a extração do LAL. Embora os animais sejam, em sua maioria, devolvidos ao oceano, estudos apontam que até 30% deles podem morrer após o processo de sangria, seja por estresse fisiológico ou por infecções posteriores ao manuseio.
“A coleta exacerbada contribui justamente para ameaça à essa espécie, porque essa espécie, na verdade, ela é classificada como vulnerável, então não está classificada ainda como ameaçada, mas ela está quase lá”, explica Felipe.
Sobre a espécie
Com aparência pré-histórica e comportamento inofensivo, o caranguejo-ferradura pode ser encontrado nos oceanos Atlântico, Índico e Pacífico e habita regiões costeiras rasas, como praias, estuários e bancos de areia, onde se reproduz e se alimenta. Embora seu corpo rígido em forma de ferradura e sua longa cauda espinhosa possam causar estranhamento, trata-se de um animal pacífico, que desempenha um papel importante no equilíbrio ecológico marinho.
Sua dieta é composta majoritariamente por pequenos invertebrados, como moluscos, vermes e crustáceos, ajudando a controlar essas populações e, consequentemente, influenciando cadeias alimentares que envolvem até espécies de interesse comercial.
“Ele contribui muitas vezes para o controle populacional de algumas espécies que são consideradas como consumidores, primários, secundários e até de outros predadores também. Ele controla essas populações e mantém o equilíbrio ecológico”, elucida o professor.
As principais ameaças para esses animais são a pesca e a exploração desenfreada, a destruição do habitat e as mudanças climáticas
caraschiff/iNaturalist
As principais ameaças para esses animais são a pesca e a exploração desenfreada para serem utilizados na indústria farmacêutica, a destruição do habitat causada pela urbanização de praias, erosão costeira e poluição e também as mudanças climáticas, que causam prejuízo principalmente na questão de avanço do nível do mar.
“A importância de se preservar esses animais é porque, na verdade, esses animais são um registro histórico importantíssimo da evolução, da nossa história da evolução dos animais, além de toda a importância ecológica que esses animais têm nas suas cadeias e terras alimentares, e também a importância econômica e médica que esses animais tem na indústria farmacêutica”, finaliza o pesquisador.
*Texto sob supervisão de Lizzy Martins
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