Câmeras corporais desmentem PMs sobre execução com fuzil de morador de rua em SP e mostram vítima desarmada e acuada
A 11ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de São Paulo determinou, em decisão liminar, que o estado de São Paulo providencie ou arque com as despesas do traslado do corpo de Jefferson de Sousa Santos, morador de rua assassinado por policiais militares, para o município de Craíbas, em Alagoas.
A decisão, assinada pela juíza Renata Yuri Tukahara Koga no último dia 29, é considerada inédita por reconhecer, de forma preliminar, a responsabilidade civil objetiva do estado pela morte de Jefferson, que sonhava em ser jogador de futebol e se mudou para a capital paulista após perder a mãe.
Jefferson foi executado com 24 tiros em junho deste ano. Os policiais militares acusados do crime foram denunciados por homicídio qualificado e tiveram a prisão decretada pela Justiça (leia mais abaixo).
A defensora pública Fernanda Balera, autora da ação, destacou a relevância da decisão.
“É a primeira vez que a Defensoria consegue que o translado do corpo seja custeado pelo estado em um caso de morte por intervenção policial. A decisão é importante porque normalmente as burocracias impostas pelo estado nos momentos de liberação, sepultamento e translado do corpo causam ainda mais sofrimento aos familiares”, disse.
O valor do translado do corpo é de cerca de R$ 15 mil, por isso a família espera conseguir ajuda da Defensoria Pública de São Paulo. O corpo segue no Instituto Médico Legal (IML).
O g1 procurou posicionamento do governo de São Paulo e aguarda resposta.
Responsabilidade do estado
Na decisão, a magistrada aplicou o artigo 37, §6º, da Constituição Federal, que prevê a responsabilidade objetiva da administração pública na modalidade de risco administrativo.
Isso significa que não é necessário provar se o policial agiu de propósito ou por descuido — basta demonstrar que a ação dele resultou no dano. Segundo a juíza, não houve nada que tirasse a responsabilidade do estado, como um imprevisto, uma fatalidade ou a culpa ser apenas da vítima.
“Estão presentes os elementos para a configuração da responsabilidade estatal: ação de um agente público, dano e nexo causal entre ambos”, escreveu a magistrada.
Custos com traslado
Com base no artigo 948 do Código Civil, que prevê reparação com despesas de funeral e luto, a juíza estendeu o entendimento para incluir o custeio do traslado do corpo para outro estado, atendendo pedido de Micaele Soares de Sousa, irmã da vítima e representante da família.
Agora, a autora da ação terá 30 dias para complementar a petição inicial, com pedido principal de indenização. Após essa etapa, o estado poderá apresentar contestação.
Quem era Jeferson
Com o sonho de ser jogador de futebol e enfrentando uma batalha contra o vício, Jeferson de Souza foi executado aos 24 anos com tiros de fuzil por policiais militares no Centro de São Paulo.
O caso aconteceu em 13 de junho, mas as imagens chocantes do jovem, que vivia em situação de rua, chorando e rendido antes de ser morto foram divulgadas no início de agosto pela TV Globo.
Jeferson saiu de Craíbas, município com cerca de 24 mil habitantes, no interior de Alagoas, em 2019, logo após a morte da mãe. A irmã da vítima, Micaele Soares, contou ao g1 que o irmão deixou a família em busca de oportunidades de emprego e uma vida melhor em São Paulo.
“A minha mãe faleceu. A gente não tem mãe nem pai. Ele foi embora em busca de trabalho. Ele tinha um sonho muito grande de ser jogador de futebol. Foi em busca de melhora”, compartilhou Micaele emocionada.
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Filho único homem entre cinco irmãos, Jeferson teve a vida atravessada por duas dores: a morte da mãe por câncer e o assassinato do pai. “Mexeu muito [com ele], e se a gente não tiver psicológico, a gente adoece, vira a cabeça”, desabafou Micaele.
Jeferson de Souza tinha 24 anos
Arquivo pessoal
Em São Paulo, Jeferson conseguiu empregos em pizzarias. No entanto, acabou entrando no mundo das drogas e, com o tempo, foi parar em situação de rua. “A gente tentou ajudar, mas quem está no vício sabe como é difícil para sair e tudo. E quando [a gente] menos espera, acontece essa tragédia.”
A notícia da morte de Jeferson chegou para a família por uma ligação da polícia.
Quem tava ali para proteger, foi lá e tirou a vida dele. Nada justifica tirar a vida de um ser humano. Por que não prendeu se ele devia alguma coisa para a Justiça? Foi por ‘malvadeza’ mesmo que eles fizeram.
Micaele lembra do irmão como uma pessoa generosa e prestativa. “Ele era muito bom, doce e sempre ajudava o próximo. Você mandava fazer uma coisa, e ele fazia.”
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Jeferson de Souza
Arquivo pessoal
Homicídio
As câmeras corporais, obtidas com exclusividade pela TV Globo, registraram o momento em que policiais militares mentiram ao justificar a execução de Jeferson de Souza durante uma abordagem em São Paulo.
Os PMs Alan Wallace dos Santos Moreira, tenente da Força Tática, e o soldado Danilo Gehring se tornaram réus por homicídio qualificado. Desde julho, eles estão presos preventivamente.
No dia do crime, os policiais alegaram que a vítima tinha reagido a uma abordagem da equipe policial e havia tentado retirar a arma de um dos agentes antes de ser baleado. Contudo, as imagens revelam que os policiais mentiram.
Pelas imagens, Jeferson estava desarmado, acuado, e foi morto com três tiros de fuzil sem apresentar qualquer ameaça.
A defesa do sargento Alan disse que “a ação policial decorreu de legítima defesa e que demonstrará isso ao tribunal do júri”. A defesa do soldado Danilo não foi localizada.
Procurada, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) afirmou que repudia a conduta dos PMs e que um inquérito policial está em andamento na Corregedoria da PM.
‘Inaceitável’ e ‘vergonhosa’
O coronel Emerson Massera, chefe do Centro de Comunicação Social da Polícia Militar de São Paulo.
Reprodução/TV Globo
Em julho, o porta-voz da Polícia Militar de São Paulo classificou como “inaceitável” e “vergonhosa” a conduta dos policiais.
Segundo o coronel Emerson Massera, chefe do Centro de Comunicação Social da PM, as imagens desmentem a versão dos policiais e mostram que a vítima já estava rendida.
“O vídeo [das câmeras corporais] contraria completamente a versão apresentada pelos policiais. Ele [a vítima] estava tranquilo, conversando com os policiais e, do nada, o tenente efetua três disparos de fuzil contra essa pessoa”, afirmou.
Para ele, o episódio “envergonha” a corporação. “É uma ocorrência sem nenhum tipo de respaldo jurídico. Evidentemente, nos envergonha muito. Viola todos os valores da instituição, inclusive da legalidade”.
PMs da Força Tática são presos por matar morador de rua no Viaduto 25 de Março, no Centro de SP
Reprodução/TV Globo