Uma investigação do Ministério Público e da Polícia Federal aponta que votos podem ter sido comprados e eleitores transferidos para a cidade. Três funcionários da prefeitura estão na mira da investigação. O prefeito eleito e o vereador citado negam as acusações de fraude e compra de voto. Grupo que comprou votos e transferiu títulos em Mangaratiba também negociou eleição para vereador, aponta investigação
A investigação do Ministério Público e da Polícia Federal aponta que o grupo que negociou para transferir eleitores para Mangaratiba também comprou votos para vereadores. A investigação apura a transferência de quase 5 mil novos eleitores para a cidade, que pode ter mudado o rumo da eleição.
A suspeita é de um esquema de transferência de título às pressas, sem estar morando na cidade, em troca de dinheiro ou outras vantagens.
Uma mulher entrevistada pelo RJ2 afirma que foi contratada para comprar votos na cidade. Ela conta que conhece bem a região e por isso foi chamada, junto a um grupo de quase 30 pessoas.
Entre os 219 candidatos a vereador de Mangaratiba, Doutor Mair foi o mais votado, principalmente nas 25 novas seções abertas – que geraram filas gigantes no dia da votação.
A mulher entrevistada disse que foi contratada pela equipe de campanha do vereador. Ela entregou conversas para a investigação que mostram a organização do pagamento dos votos no dia da eleição. Os prints mostram que ela tirava foto do comprovante de votação e enviava para uma outra mulher, que contabilizava.
O pagamento de 7 votos foi feito via pix, e o comprovante anexado na investigação. Cada voto era comprado por R$ 160.
“Depois que eles saíssem lá de dentro, eu desse o papelzinho, o santinho a eles, ou anotasse na mão deles o número do doutor. E depois que eles saíssem lá de dentro, eu pegasse o canhotozinho deles, tirasse a foto e enviava pra ela”, explica ela.
Doutor Mair foi secretário municipal de saúde na cidade. Um assessor da pasta também é investigado. Ele foi exonerado depois da revelação do caso.
Procurado, o Doutor Mair disse que, em relação aos votos recebidos em novas zonas eleitorais, tem conhecimento de apenas uma delas, que fica em Muriqui, onde ele diz ser seu principal reduto eleitoral. Segundo o vereador, ele foi o candidato mais votado na região na eleição de 2020 e, agora repetiu o feito, aumentando a votação.
O vereador declarou que o país é democrático e que é fundamental respeitar e valorizar o processo eleitoral. Disse ainda que repudia qualquer atitude ilícita que comprometa a legitimidade das eleições e que percebe que a oposição derrotada tenta anular o resultado do pleito.
Eleição acirrada
A eleição para a Prefeitura de Mangaratiba foi decidida por 125 votos. Com 45 mil eleitores, o município criou 25 novas seções de votos – onde o prefeito eleito ganhou de lavada.
A diferença entre um candidato e outro foi de 0,3%, mas nas 25 novas seções o prefeito eleito ganhou. Considerando apenas os novos locais, Luiz Cláudio (Republicanos) teve 3.762 votos contra 2.074 de seu adversário Aarão de Moura Brito (Progressistas).
Três funcionários da Prefeitura de Mangaratiba são investigados por suspeita de envolvimento no esquema de transferência de eleitores para a cidade e a compra de votos deles. O esquema suspeito foi revelado pelo Fantástico.
Gabriel Pudó Brito de Quadros ganha R$ 1,7 mil como assessor da Secretaria de Saúde. Ele é apontado pela investigação da PF e do Ministério Público como suspeito de compra de votos na última eleição municipal.
O RJ2 esteve na Secretaria Municipal de Saúde de Mangaratiba, onde ele é lotado, mas Gabriel não estava no local. Por ligação, o repórter aponta que testemunhas disseram que Gabriel pedia para encontrar os eleitores pessoalmente para fazer as propostas.
“Então, você pede essa pessoa para ir na delegacia e esclarecer isso melhor, tá bom, meu amigo?”, foi a resposta dele.
Gabriel nega ter relações políticas, mas fez campanha para o vereador eleito, Dr. Mair. Imagens da investigação mostram que ele dizia que tinha que fazer a proposta financeira pessoalmente.
Até março, Lucas Andrews Rosário de Miranda trabalhava como superintendente na secretaria de Governo. Ele é apontado pela investigação como um dos responsáveis a convencer eleitores a transferirem o título para votar em Mangaratiba.
O valor, para isso, girava em torno de R$ 100, e os alvos eram pessoas humildes, que em muitas vezes temiam perder benefícios do governo, como o Bolsa Família, ao fazer a transferência.
Outro funcionário investigado é Luciano Messias dos Santos. Ele tem salário de R$ 3,5 mil no cargo de superintendente. Mas, em um aplicativo de mensagens ele se apresentava como o responsável pela logística no dia da votação.
Luciano prometia, além do dinheiro pelo voto no candidato indicado, uma ajuda de custo para o transporte. Nas redes sociais, nunca escondeu o apoio ao atual prefeito Alan Bombeiro (PP), em cuja prefeitura estão ou estavam abrigados suspeitos de comprarem votos para ajudar a eleger seu sucessor, o Luiz Cláudio.
Conversas mostram negociação
Uma das eleitoras que diz ter transferido seu local de votação para Mangaratiba, no RJ, afirma que recebeu R$ 150 e uma ajuda de custo pela venda do voto. O RJ2 teve acesso a uma conversa entre ela e um operador do esquema.
“Boa noite, amiga, meu nome é Luciano, sou o responsável pela logística no dia da votação. Gostaria de alinhar a sua vinda para participar aqui em Mangaratiba. Meu contato é para entender o trabalho que meu amigo Alexandre fez e viabilizar o valor do Pix do dia do evento”, diz o homem.
Eleitora diz que recebeu R$ 150 para transferir local de votação e ajudar a eleger prefeito em Mangaratiba
“Você vai para um local onde você vai encontrar a equipe, o pessoal vai te direcionar direitinho, conduzir ao colégio, tem água gelada, tudo dinheiro, profissional, entendeu?”, explica o homem para a eleitora.
Depois, o homem aponta os nomes de quem a mulher deveria votar, incluindo o prefeito que acabou eleito, Luiz Cláudio Ribeiro. Moradora de Campo Grande, ela disse que não sabia onde seria a votação até o dia anterior.
“Eu só sabia que seria em Muriqui, mas não sabia o local de votação, não sabia nada. Nem meu título estava em minhas mãos ainda”, conta ela.
Hoje, Mangaratiba tem mais eleitores registrados do que habitantes: São 41,2 mil moradores, segundo os últimos dados do IBGE. E o número de pessoas que votam na cidade chega a 46,8 mil.
Fantástico investiga esquema em eleição em cidade que tem mais eleitores do que moradores
Movimentação suspeita
Só nos primeiros cinco meses de 2024, mais de 5,5 mil pessoas pediram à Justiça Eleitoral para transferir os títulos eleitorais para o município. Quase 1,5 mil desses pedidos foram negados por inconsistências nas informações.
A corrida para a troca de domicílio chamou a atenção da promotoria que fica próxima ao cartório eleitoral de Mangaratiba.
“Chegou um momento que encheu tanto que não cabia mais aqui no corredor. Eles tiveram que descer com a fila lá para a porta do fórum, para a rua, com distribuição de senha, era um negócio absurdo”, afirmou a promotora eleitoral Débora de Souza Becker Lima.
Ela afirmou ainda que muitas pessoas não sabiam os nomes dos distritos do município, o que acendeu um sinal de alerta:
“A gente perguntava o que que estavam fazendo ali, o que que elas queriam fazer no cartório, onde que elas moravam. Às vezes as pessoas se enrolavam, não sabiam o nome dos distritos. É, por exemplo, aqui tem um distrito chamado Fazenda Ingaíba. E aí eu abordei uma vez um rapaz, ele falou que morava na Ingaiba. Falei ‘bom, então você não mora em Mangaratiba, sugiro que você vá embora'”, disse a promotora.
Após o resultado da eleição, que terminou com a vitória do deputado estadual Luiz Cláudio por uma diferença de 125 votos, o candidato Arão Moura encaminhou uma notícia crime ao MP. O prefeito eleito nega as acusações de fraude e compra de voto.
A promotora eleitoral encaminhou o caso para a Polícia Federal, que também instaurou um procedimento que pode iniciar uma investigação judicial eleitoral. Entre as possíveis consequências para a chapa vencedora, estão a cassação do diploma e a inelegibilidade.
“Ainda está em processo bem inicial, mas se for comprovado, isso aí teve um impacto imenso, um desequilíbrio imenso no resultado da eleição de Mangaratiba”, pontuou Débora Becker.
TRE diz que conceito de domicílio é amplo
O Tribunal Regional Eleitoral explicou que, no Direito Eleitoral, o conceito de domicílio é mais amplo do que no Direito Civil.
“De acordo com a Resolução TSE 23.659/2021, a comprovação de vínculo para fixação do domicílio eleitoral não se restringe à residência. Pode ser estabelecida por vínculos afetivos, familiares, profissionais, comunitários ou outros que justifiquem a escolha do município, cabendo ao eleitor apresentar comprovação ao solicitar alistamento ou transferência eleitoral”, afirma o órgão.
“Em Mangaratiba, cidade caracterizada como região de veraneio, muitos imóveis não são a residência principal de seus proprietários ou locatários. Ainda assim, a legislação eleitoral permite que esses cidadãos optem por votar na cidade, desde que comprovem vínculo conforme exigido”, emenda o posicionamento.
O posicionamento segue explicando mecanismos que a Justiça tem para identificar fraudes.
“Se o número de transferências eleitorais em um ano exceder em 10% o do ano anterior, o Tribunal Superior Eleitoral pode determinar a revisão. Revisões também podem ocorrer se o número de eleitores superar 65% da população projetada pelo IBGE para o município no ano em questão”, explica.
Nota do prefeito eleito
O prefeito eleito de Mangaratiba, Luiz Cláudio, enviou uma nota negando as acusações e acusando membros da chapa derrotada de enviar informações ao MP após a perda das eleições:
“Em relação à matéria veiculada no programa Fantástico da Rede Globo, na noite de 24/11/2024, sobre suposta fraude nas eleições de Mangaratiba, o deputado estadual Luiz Cláudio, prefeito eleito no pleito de outubro de 2024, esclarece:
– Refuta categoricamente qualquer acusação de compra de votos ou prática de atos ilícitos para interferir no resultado das eleições. Ressalta que não autorizou ninguém a agir em seu nome de forma irregular.
– Estranha a insistência da chapa derrotada em questionar o resultado legítimo das urnas, recorrendo a ações judiciais sem fundamento. Até o momento, a chapa derrotada ajuizou oito ações, todas já julgadas improcedentes pela Justiça.
– A matéria evidencia a existência de provas forjadas pela chapa derrotada, como comprovantes de votação falsos, eleitores inexistentes, pessoas falecidas e eleitores que não votaram em Mangaratiba.
– A promotora mencionou na reportagem a apreensão de um drone que “monitorava” a movimentação de eleitores. Sabe-se que o equipamento estava sendo operado por pessoas ligadas a um partido coligado à chapa derrotada.
– O eventual aumento do número de eleitores no município, ao contrário de prejudicá-lo, favoreceria o candidato Aarão, cuja votação aumentou mais de 60% em relação aos últimos três pleitos municipais que disputou.
– Conforme declarado pela promotora, os recibos de urna apresentados não comprovam nenhuma irregularidade no resultado da eleição, já que não é possível identificar qual candidato teria sido beneficiado.
– Das mais de cinco mil supostas irregularidades apuradas pelo Ministério Público, 1.457 transferências de títulos foram canceladas antes da eleição, demonstrando a atuação eficaz do órgão para garantir a lisura do processo eleitoral.
– Reitera sua plena confiança na Justiça Eleitoral e afirma que todas as suas ações seguiram rigorosamente a legislação vigente. As acusações feitas carecem de respaldo em fatos ou evidências concretas.
Por fim, é fundamental esclarecer que o candidato Aarão, cuja inelegibilidade foi suspensa às vésperas da eleição, iniciou, após o resultado desfavorável, uma campanha para fabricar provas de suposto abuso de poder. Essa estratégia, lamentavelmente, inclui questionar o cadastro de eleitores do município, que é rigorosamente controlado pelo Ministério Público e pela Justiça Eleitoral.”