Presença de uma das maiores organizações criminosas do país no território indígena intensificou o narcogarimpo e violência na região, explica um dos pesquisadores do estudo ‘Cartografias da violência na Amazônia’, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Área degradada pelo garimpo no Alto Catrimani, na Terra Indígena Yanomami
Lucas Silva/Platô Filmes/ISA
O Primeiro Comando da Capital (PCC), facção criminosa paulista, atua desde 2015 em áreas de garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami. É o que revela pesquisadores do estudo “Cartografias da violência na Amazônia”, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
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👉 De difícil acesso, a Terra Yanomami é o maior território indígena do país e está localizado entre os estados de Roraima e Amazonas. Nos últimos seis anos, a região enfrentou o aumento desenfreado do garimpo ilegal no território, com episódios de violência armada e mortes violentas. Neste contexto, nos últimos anos, a atuação do PCC na região passou a ser a do narcogarimpo, com venda de drogas e exploração de ouro e cassiterita.
O estudo mostrou ainda que facções criminosas estão presentes em 14 dos 15 municípios de Roraima – apenas Uiramutã, proporcionalmente mais indígena do país, não tem presença de grupos criminosos (veja na tabela mais abaixo).
Para identificar como o PCC se originou no território Yanomami, pesquisadores do Fórum entrevistaram “narcogarimpeiros” — membros de organizações criminosas que atuam no garimpo ilegal. O documento também detalha que existe a presença do Comando Vermelho e de “milícias” dentro da terra indígena, no entanto, o PCC tem a maior expansão.
Ao g1, o pesquisador Rodrigo Chagas, professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e pesquisador sênior do Fórum detalha que chegou aos entrevistados a partir da morte do garimpeiro Sandro Moraes de Carvalho, de 29 anos. Principal membro do PCC na região, ele morreu em maio de 2023 em confronto com gentes da Polícia Rodoviária Federal e Ibama na Terra Yanomami.
Uma das fontes foi um narcogarimpeiro, de 21. Aos 13 anos, em 2015, segundo o pesquisador, o jovem entrou pela primeira vez no território. Desde então, acompanhou a ascensão do Sandro no narcogarimpo.
“Ele fez diversas participações: atuou como garimpeiro e atuou como traficante dentro da Terra Yanomami. Então, esse rapaz [entrevistado] acabou sendo chave para trazer a ideia do começo do PCC na Terra Indígena Yanomami. Ele acompanhou a ascensão do Sandro”, contou Chagas.
Conhecido na facção como “Presidente”, Sandro também era foragido da Justiça do Amapá, onde respondia a processo por roubo qualificado. Ele tinha o costume de publicar vídeos exibindo inúmeras armas de fogo e a rotina de treinamento de tiro dentro da Terra Yanomami.
Em 2015, era o Magrão e o Presidente (Sandro), vendendo droga. [Eles diziam]: ‘Aqui é o nosso setor, aqui é o Primeiro Comando da Capital’. Eles levantavam a voz, e os outros [garimpeiros] perguntavam: ‘Quem são esses loucos?’.
RELEMBRE:
Quatro garimpeiros morrem em troca de tiros com PRF e Ibama na Terra Yanomami
Garimpeiro morto em confronto com PRF e Ibama na Terra Yanomami era chefe de facção e foragido
Garimpeiro membro de facção morto em confronto na Terra Yanomami ostentava armas e habilidade com tiro
🔎 Contexto: O PCC nasceu em 1993 na Casa de Custódia de Taubaté, no interior de São Paulo, como um “sindicato do crime”, visando denunciar violações no sistema prisional a partir de uma “guerra contra o sistema”. Já sob a liderança de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, o PCC tornou-se uma espécie de empresa, cuja prioridade é o lucro.
Rio Uraricoera, logística e violência do PCC
Na entrevista aos pesquisadores, o narcogarimpeiro contou ainda os detalhes técnicos e logísticos do PCC no garimpo, o que inclui a rigidez no trabalho sob ameaça armada, treinamentos com armas de grosso calibre, e confrontos com facções rivais descritos como “cenas de guerra.”
A presença de facções criminosas de abrangência nacional, como o PCC e o CV, em Roraima passaram a ser registradas a partir de 2013, com intensificação em 2015 – nos anos seguintes, a guerra entre os grupos criminosos no estado aumentou em 218% os homicídios na capital Boa Vista. E essa disputa por território chegou à Terra Yanomami com a intenção de explorar áreas de garimpo e ampliar o poder financeiro.
No território, a área de dominação do Comando Vermelho é o rio Mucajaí, enquanto que a do PCC é o rio Uraricoera – a principal via usada pelos criminosos para chegar à Terra Yanomami, segundo a dinâmica identificada pelos pesquisadores. Porém, apesar da presença das duas facções, o PCC é quem domina a maior parte das área de garimpos.
“O PCC ali dentro do Uraricoera é o ninho do Comando [em Roraima]. Quando sobe um cara do CV eles já estão sabendo por apoiadores do PCC [espalhados pelo território]”, detalhou o entrevistado aos pesquisadores.
Quando acontece de um integrante de facção rival ser capturado pelo PCC no território, ela é submetida à violência imposta pelo PCC.
Nessas situações, segundo o estudo, o inimigo é levado ao meio da corrutela [áreas ligadas a venda de mercadorias lícitas ilícitas] e ao mercado sexual, onde sua morte é decretada pelo “crime de oposição” ao PCC.
Dinâmica de atuação
No início da pesquisa, a hipótese era a de que havia “transbordamento” das facções: com a expansão das facções criminosas originárias do sudeste brasileiro para presídios e periferias de cidades como Boa Vista, os membros passaram a se infiltrar no garimpo — locais historicamente frequentados por fugitivos e com alta demanda por pistoleiros e jagunços.
No entanto, as entrevistas mostraram que, na verdade, a intenção inicial dos membros da facção sempre foi atuar no garimpo e colocado como um objetivo direto do grupo.
Facção atua na Terra Yanomami e Sandro Moraes, o “presidente”, postava rotina nas redes sociais
Reprodução
Para Rodrigo Chagas, o fator determinante para o aumento das facções na região Yanomami foi a falta de fiscalização de forças policiais – um outro reflexo disso também foi na presença de garimpeiros, que chegou a 20 mil no auge da crise Yanomami. Com isso, os grupos viram a possibilidade de aumentar a atuação no território.
“O garimpo se tornou referência para o desenvolvimento das facções pela ausência de segurança e a capacidade dessas pessoas ampliarem suas atividades com grandes ganhos com a mineração, prostituição e outras atividades que eles fazem”, avaliou.
A pesquisa identificou ainda a dinâmica de dois grupos de invasores no território.
O de “trabalhadores”: homens mais velhos que trabalham direto nos barrancos, na extração de ouro, e mulheres que atuam como as cozinheiras dos garimpeiros.
E o de “ladrões”: considerados os “bandidos”, são os que negociam ouro, drogas e armas nos garimpos.
Apesar da divisão, indicada pelos entrevistados, Chagas não descartou a possibilidade de cooptação dos “trabalhadores” para o crime organizado. Avaliação reforçada pelo relatório, em que um narcogarimpeiro contou entrou para a facção.
“Começou: ‘E aí, mano, bora se cadastrar?’. Me cadastrei. ‘Tu tem família, mano?’ ‘Não, mano, tô rodado, minha família mora no Maranhão […]’. ‘Nós [facção] vamos te apoiar’”, contou, expondo como o PCC age.
O pesquisador explica que, muitas vezes, a facção até usa da vulnerabilidade de alguns garimpeiros para ampliar o número de membros no território.
“Essa cooptação ocorria. Se o garimpeiro está sem ouro, sem recurso, ele era convidado a participar do PCC e virar ‘irmão’, se batizar. Foi assim que meu interlocutor virou irmão do PCC, do jeito que ele falou: ‘Ah, você tá rodado ai, sem dinheiro, sem família, vem que a gente cuida de você'”, diz o pesquisador.
Além da cooptação, o pesquisador detalha a existência de um terceiro o grupo, os “corre-junto”. São pessoas que não são necessariamente “batizadas” na facção, mas que fazem trabalhos para eles e operam sobre a lógica do grupo criminoso. Um exemplo são os barqueiros, que podem atuar como informantes dos membros da facção.
Terra Yanomami é ‘espaço privilegiado’ para facções
Embora tenha chegado à dinâmica do crime organização na Terra Yanomami, principalmente do PCC, o pesquisador afirma que ainda não é possível determinar o número de integrantes em razão de ser uma contagem complexa, o que dificulta a existência de um número consolidado.
Para ele, além de possíveis números, o mais preocupante é que o território indígena se mostrou “um espaço privilegiado” para os grupos criminosos devido à fatores como:
Fronteira para receber armas e drogas, pois a Terra Yanomami faz divisa com a Venezuela;
Pistas clandestinas para fazer ligação com outros estados do Brasil,
Venda de drogas no varejo tendo ouro como moeda de troca;
Exploração do ouro e cassiterita;
Exploração do mercado sexual;
Lavagem do dinheiro da droga ou da própria droga por ouro;
Ambiente de difícil acesso e pouco fiscalizado.
Por conta disso, há uma resistência em abrir mão das áreas, apesar das operações policiais, que se intensificaram em 2023.
“Então eu acho que para além do tamanho efetivo desse grupo, eu acho que é importante a gente pensar nessa trajetória: duas pessoas em 2015 que faziam isso, começaram simplesmente levando droga […] Agora, potencialmente um espaço de reprodução ampliada dessas facções”, avaliou.
Sandro Moraes de Carvalho, assassinado em 2023, também ostentava ouro extraído ilegalmente da Terra Yanomami
Reprodução
De acordo com o estudo, garimpeiros experientes relatam ser praticamente impossível fazer a extração de ouro atualmente na terra indígena devido às operações de fiscalização, o que leva muitos a Guiana e Suriname, enquanto outros aguardam uma possível mudança de governo para retornar. Apesar do cenário, uma resistência armada continua no território, inclusive com mudança de atuação na garimpagem, trocando o trabalho do dia pela noite, quando o monitoramento se torna mais difícil.
Segundo o professor, um dos entrevistados ofereceu acesso ao território para que o parceiro de pesquisa conversasse com membros de facções presentes na Terra Yanomami. A entrevista foi realizada em setembro deste ano, o que confirma a permanência desses grupos na região.
Caminhos para solucionar a situação devem ser feitos de médio a longo prazo e estruturais, segundo o pesquisador. Entre as medidas para a terra indígena, ele cita um maior controle do espaço aéreo, controle efetivo das regiões de fronteira. A atuação também deve passar por jovens e pelo sistema carcerário em Boa Vista, onde os grupos criminosos se ampliam.
“Isso não vai ser uma coisa que desaparece do dia para noite, pelo contrário agora. Se você ficar nessas atuações de grande intensidade para tentar finalizar em pouco tempo o processo e largar o território, me parece que tende a voltar o que era”, sugeriu.
Conheça a Terra Yanomami
Arte/g1
As facções criminosas em Roraima
O estudo do Fórum de Segurança também revelou que quase todos os municípios de Roraima possuem presença de facções criminosas, com exceção de Uiramutã, a cidade mais indígena do país (veja na tabela mais abaixo).
O trabalho destaca a presença de três facções no estado: PCC, Comando Vermelho e Tren de Araguá, uma facção venezuelana presente na capital Boa Vista e no município de Pacaraima, na fronteira com o país vizinho.
O PCC é o mais predominante e tem controle nos municípios de Amajari, Cantá, Caroebe, Normandia, São João da Baliza e São Luiz. A facção também disputa o domínio das outras sete cidades, como Alto Alegre e Mucajaí, onde está parte da Terra Indígena Yanomami e rota de entrada para o território.
Presença de facções em municípios de Roraima
Presença de facções criminosas cresce 46% na Amzônia Legal
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